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Uma história Severina

Para quem ainda questiona a decisão do STF que legalizou a interrupção da gestação de fetos anencéfalos, deixo um trecho do texto da fantástica Eliane Brum seguido do filme “Uma História Severina”, dirigido pela própria Eliane.

Chega de torturar mulheres

O que o STF decidirá, ao julgar a permissão do aborto de anencéfalos, é se o Brasil respeita os direitos humanos – ou prefere seguir infligindo dor a mulheres que tiveram a infelicidade de gerar um feto incompatível com a vida

Por: ELIANE BRUM (Clique aqui para ler o texto completo)

Agora, Severina, que nos conta com o seu viver o que é a vida em tragédia. Em 20 de outubro de 2004, no mesmo momento em que o Supremo derrubava a liminar que permitia o aborto de anencéfalo sem autorização judicial e um dos ministros perguntava se essas mulheres existiam, Severina Maria Leôncio Ferreira internava-se em um hospital do Recife para interromper a gestação. O médico decidiu deixar o procedimento para o dia seguinte – e no dia seguinte foi tarde demais. Severina teve de deixar o hospital carregando sua dor e sua barriga. Era o seu segundo filho. E ele não viveria.
Severina e seu marido Rosivaldo plantavam brócolis em Chã Grande, um pequeno município nas proximidades do Recife. Mesmo pobres e analfabetos, eles decidiram procurar a Justiça em busca de autorização para interromper a gravidez. Aqui talvez valha uma pausa para se enfiar na pele de Severina e imaginar o que é para uma mulher analfabeta, vinda da zona rural, sem dinheiro, buscar a Justiça no Brasil – e isso tudo em um momento em que se sentia despedaçada. Severina só teve a coragem de enfrentar essa enormidade porque continuar aquela gestação para a morte seria um martírio ainda maior.
Acompanhei Severina para contar o longo dia seguinte a que os ministros do Supremo não assistiriam. O documentário Uma História Severina (Imagens Livres), dirigido por mim e pela antropóloga Debora Diniz, mostra que as mulheres severinas existem – e precisam que o Estado reconheça sua existência, sua dor e seus direitos. A longa travessia de Severina é contada em apenas 23 minutos. Quem quiser pode assistir ao documentário na internet, basta clicar aqui. Em 2005, O filme foi enviado a todos os ministros do Supremo.
Não vou repetir o que está contado pelo registro da vida em curso de Severina. Cada um pode ver por si mesmo. Quero contar apenas sobre algumas pequenas delicadezas e grandes brutalidades da trajetória de Severina que podem complementar as imagens – e nos ajudar a compreender o que significa para uma mulher ser condenada a continuar gerando um filho para a morte. Nas últimas semanas do martírio de Severina, eu tirei férias da ÉPOCA, onde trabalhava como repórter especial, e passei a acompanhá-la. Só a deixei depois do enterro do bebê, que nasceu morto.
Se a liminar não tivesse sido derrubada, Severina faria o aborto no quarto mês de gestação. Como foi obrigada a entrar na Justiça, seu sofrimento foi prolongado até o sétimo mês, quando finalmente conseguiu a autorização. Tenho convicção de que Severina não deveria ter vivido o que viveu nesses três meses. Ao testemunhar seu sofrimento, ficou muito claro para mim que aquilo era, sim, um tipo de tortura – uma tortura imposta pelo Estado.
Até o exame revelar que seu filho era anencéfalo, Severina fazia o pré-natal na companhia de outras grávidas da zona rural, numa alegre romaria de mães tecendo roupinhas e planos. Severina queria muito um segundo filho – e Rosivaldo, seu marido, sonhava com uma menina. De repente, os caminhos dessas mulheres bifurcaram-se – também literalmente. Dali em diante, Severina seguiria sozinha, por outra estrada. E no percurso dela, haveria morte – e não vida.
Imaginar como era a cabeça do filho dentro dela foi um dos horrores vividos por Severina nos três meses que se seguiram. Ela tinha, naquele momento, um medo e uma esperança. O medo era o de machucar, com algum movimento mais brusco, aquela cabeça em que o médico disse e o ultrassom mostrou que faltava uma parte. Para ela, era como uma ferida aberta. Numa ocasião, Severina sentiu-se mal e botou para fora um vômito escuro. Pensou que era sangue. E sofreu atrozmente por pensar que tinha machucado a cabeça do bebê.
A esperança, Severina só às vezes confessava. Mas pensava, quase sempre, que algo mágico aconteceria de repente, e a cabeça do filho seria reconstituída dentro dela. A cada sensação diferente, essa fantasia reacendia-se. Severina então me dizia, meio envergonhada: “Eu sei que não pode ser, o médico disse que não acontece, mas será que…?”.
Enquanto esperavam por uma decisão judicial, em horas e horas de cadeira, pilhas e pilhas de papéis que não decifravam, Rosivaldo, o marido de Severina, enfrentava a curiosidade do povo na feira. Já se espalhara na pequena comunidade que ele era “o pai do bebê sem cabeça”. No próprio verbete do dicionário Houaiss, a anencefalia é definida como “monstruosidade”, o que diz bastante sobre como o senso comum percebe essa fatalidade. Na escassez de novidades da vida da cidade pequena, Rosivaldo despontou como o “pai do monstro”. E quando ele alcançava a feira para vender seus pés de brócolis, precisava se conter para não responder com violência física à agressão verbal da vida concreta dos dias.
Só quando a autorização judicial chegou, Severina reuniu forças para uma providência que até então não tivera coragem de tomar: comprar a roupa com que o filho seria sepultado. O ato transformou-se numa violência muito maior do que já era – uma violência que me faltou repertório para prever. Severina queria uma roupinha com capuz para impedir que a cabeça malformada do seu bebê ficasse exposta à curiosidade pública no enterro. Severina desejava pelo menos poder proteger seu bebê na morte. É importante lembrar que, agora, não era mais um aborto, como teria sido no início da gestação. Agora, seria um parto. Haveria um enterro e, para sempre, um filho sepultado. E, no caso de Severina, existiria ainda a insanidade de um bebê sem certidão de nascimento – mas com atestado de óbito.
Como venho do Estado mais frio do Brasil, eu jamais supus que encontrar uma touca poderia ser um problema. Mas, no clima tropical do Recife, Severina não conseguiu achar uma roupinha com capuz. E o inusitado do pedido fez com que ela se sentisse obrigada a explicar, de loja em loja: “Ele não vai viver”. Prometi, então, que depois que ela fosse internada, eu procuraria por ela. Encontrei no dia seguinte, em um shopping, uma roupinha branca com uma touca que ela ficou acariciando no hospital com os olhos afogados. Depois, buscou o álbum de fotografias de seu filho, Walmir, então com 4 anos. Acariciou cada foto em silêncio – cada uma delas uma prova de que ela poderia gerar um filho vivo.
Na rede pública de saúde, desenhou-se a estação seguinte do calvário severino. Ela foi empurrada de um hospital a outro, com a autorização judicial na mão. “Não há vagas”, “meus colegas são contra o aborto”, “tenha paciência”. Não fosse Paula Viana, da ONG Curumim, ajudar Severina a fazer cumprir seus direitos duramente conquistados, sua peregrinação duraria ainda mais tempo, como é mostrado no documentário.
Severina suportou mais de 30 horas de trabalho de parto, a maior parte delas com contrações excruciantes. Quando não tinha mais posição, arrastava-se até o corredor. Era inevitável encontrar-se com uma mãe feliz com seu bebê – vivo – no colo. Nesses momentos, os olhos de Severina gritavam uma dor que eu nunca vi no olhar de outro ser humano. Se a tortura de Severina fosse resumida em uma só cena, seria aquele olhar. Aquele olhar que palavras são insuficientes para descrever. Entre todas as mulheres da maternidade, Severina seria a única ali que, ao final, teria um caixão – e não um berço.
E assim foi.
Severina está longe de ter sido a única mulher torturada nesses anos todos, apenas que sobre a tortura dela há documento. Espero dormir na quarta-feira em um país que não torture mulheres porque tiveram a infelicidade de gerar um feto sem cérebro.

O ABORTO DE TODAS

"Crucified woman" por Eric Drooker

Recentemente foram divulgados os dados obtidos na primeira pesquisa nacional domiciliar sobre o aborto. Os resultados só confirmam o óbvio: precisamos começar a discutir o tema seriamente, trabalhar com dados e não com opiniões pessoais, colocar a mulher nessa equação e reconhecer que, a despeito da criminalização, as mulheres abortam e muito no Brasil.

A pesquisa indicou que um em cada 7 mulheres já abortou no Brasil, elas estão na faixa etária entre os 18 e 39 anos, são provenientes de todas as classes econômicas e sociais. 28% delas são católicas ou evangélicas, 14% possui curso superior. São mulheres comuns, com seus trabalhos, sonhos, planos e um denominador comum: todas são consideradas criminosas aos olhos da lei brasileira, que só permite o aborto em duas circunstâncias: estupro ou gravidez que represente risco para a vida da mulher.

O resultado mais marcante da pesquisa é a estimativa do número de brasileiras que já fizeram aborto, cinco milhões. Mais da metade delas precisou recorrer a atendimento médico devido a complicações após o procedimento, muitas vezes feito em casa com o uso de medicamentos como o Cytotec, cujo registro foi suspenso pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), mas é facilmente encontrado nas mãos de vendedores ambulantes em lugares como a Uruguaiana, no Rio de Janeiro. As complicações de um aborto mal sucedido vão de hemorragia à infecção generalizada, passando pelo comprometimento dos órgãos reprodutores que podem redundar em infertilidade. Conforme a ONG holandesa Women on Waves, a cada 8 minutos uma mulher morre vitimada por complicações após o aborto, esses casos, é claro, são resultados de procedimentos rudimentares, realizados pelas próprias mulheres ou por clínicas de aborto ilegais, sem quaisquer condições de oferecer atendimento seguro para essas mulheres.  

A situação no Brasil se complica ainda mais se considerarmos que uma mulher pode ser presa caso procure atendimento em hospitais após um aborto, como se isso não bastasse, ainda são humilhadas e maltratadas por muitos profissionais da saúde. Resultado, as mulheres que abortam protelam a ida aos hospitais e quando decidem procurar atendimento já estão em condições físicas bastante debilitadas, isso quando vão aos hospitais, muitas acabam morrendo antes mesmo de receber cuidados médicos.   

Ou seja, cinco milhões de brasileiras já tiveram suas vidas em risco por causa do aborto realizado em condições inseguras. Todas as brasileiras que eventualmente necessitem interromper uma gestação indesejada estão em risco, todas as mulheres brasileiras estão em risco. Isso porque quando se pensa em aborto sempre o que está em questão é a “vida” em potencial de um embrião, nunca a vida que já é, que já existe, a vida das mulheres. O direito, o nosso direito, de levarmos até o fim uma gravidez indesejada, o nosso direito de decidirmos sobre nossos corpos, sobre nossas vidas.

A legislação brasileira prevê que a interrupção das atividades cerebrais, ou a redução irreversível dessas atividades, significa morte cerebral e possibilita a retiradas dos órgãos para doação. Ora, então porque, afinal, um aglomerado de células sem resquício de ao menos tronco cerebral, sem consciência, vale mais do que a vida de uma mulher? Quando falo de aborto, quando defendo o aborto, me refiro a estágios iniciais da gestação, me refiro a esse período em que o aglomerado de células que futuramente podem gerar um feto não possui qualquer estrutura que pode caracterizar a existência de consciência. Entre uma vida em potencial e uma vida que já existe, eu sempre defenderei a segunda! E é essa vida, esses milhões de vida, que estão em risco. A criminalização do aborto é a criminalização de TODAS as mulheres desse país. A criminalização do aborto significa nos jogar, todas, no submundo das clínicas ilegais, dos camelôs vendedores de Cytotec. A criminalização do aborto ameaça nossas vidas, nossos direitos, nossa autonomia. Ser favorável ao aborto não é ser pró-escolha e contra a vida, como defendem certos engravatados – sem útero, diga-se de passagem – ser favorável ao aborto é ser a favor da vida de todas as mulheres.