Archive for the ‘ Brasil ’ Category

Idas e vindas

Morei um tempo perto de duas estações de metrô. Era a época na qual eu achava ótima a idéia do rodízio de carros na cidade de São Paulo e me horrorizava quando via carros ocupados apenas por seus motoristas devidamente enfileirados nos monstruosos engarrafamentos paulistanos. “Mais amor, menos motor!” vociferava ao lado dos moderninhos e suas bikes de dois mil reais.

Até que me mudei para um bairro afastado da região central. Particularmente gostei da mudança pela tranquilidade e silêncio do condomínio fechado onde estou vivendo, mas nada é perfeito. O canto dos passarinhos pela manhã custou algo – agora moro longe de qualquer estação de metrô, num bairro feito para quem tem carros, ou seja, transporte público não é o forte da região. Ter carro aqui não é luxo, é necessidade mesmo. Não, não dá para comprar uma bike de dois mil reais para enfrentar as marginais, né?

E senti o gosto amargo de precisar escapar do rodízio. Já tenho duas multas na conta por não ter conseguido chegar ao meu destino graças ao trânsito e a falta de opção de transporte. O possante e eu, devidamente presos no trânsito barulhento e com o estresse dos radares e das canetas nervosas dos agentes da CET.

Veio a constatação: é fácil demais defender menos motor quando existe a opção de usar o metrô. Menos motor… aham… e mais metrô, certo?

É evidente que acabar com o rodízio não vai ajudar muito, o trânsito já é ruim com, imaginem sem. Mas é mais evidente ainda a ingenuidade dos doutos governantes que não sacaram que virou prática comum ter dois veículos para escapar do rodízio. Ou eles acham que é por acaso o crescimento de ofertas de vagas nos prédios novos? O rodízio pelo rodízio mais atrapalha do que facilita a vida dos cidadãos que vivem em São Paulo. A lei sem uma estrutura eficiente para sustenta-la vira um suplício para os moradores da cidade. É preciso melhorar a oferta de ônibus que respeitem seus horários, é preciso aumentar a malha ferroviária e metroviária e buscar opções alternativas de transporte rápido e com preços justos.

Uma opção que poderia ser ótima para bairros residenciais e mais afastados do centro são os bondes há muito desativados nas cidades brasileiras como principal alternativa de transporte. Em Amsterdam pude usar os excelentes, silenciosos e confortáveis “trams” – em bom tupiniquês “bonde” mesmo. Poderia ser uma boa idéia colocar esses charmosos bondes nos bairros residenciais e liga-los às estações de metrô ou terminais rodoviários. Não dá para imaginar um tram passando pela Av. Paulista, pioraria o trânsito, mas bondes chegando até o terminal da Barra Funda vindos de bairros como a Lapa, Pacaembu, Jaguará e Pirituba, ou até mesmo passando por ruas afastadas das estações de trem e conectando-as, representariam uma opção consistente para as pessoas deixarem os carros nas garagens. Eu adoraria deixar o meu paradinho, vamos considerar que os preços dos estacionamentos em Sampa estão proibitivos!

Tram de Amsterdam

Os bondes são mais simples, rápidos e baratos de implementar do que estações de metrô, que custam caro e demoram anos para serem concluídas. Outra vantagem é que são menos poluentes e os novos bondes são silenciosos e confortáveis.  Agora fica a pergunta: Por que diabos os governantes não ressuscitam de vez os saudosos bondinhos?  

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UPPs e como enganar (mais uma vez) o povo do Rio de Janeiro

Breviário da política brasileira – Parte 2: eleições municipais

Se o TRE não vai divulgar, nós divulgamos!

A derrota do PSDB em São Paulo – alguns comentários

Foi com apreensão que acompanhei as eleições na cidade de São Paulo e com enorme frustração recebi o resultado. A derrota do candidato José Serra na cidade de São Paulo é grave. São Paulo se mostrou nos últimos anos como um centro de resistência ao projeto petista de homogeneizar o quadro político brasileiro e a vitória do PT nas eleições municipais da maior cidade do país coloca em risco a oposição ao PT.

Mas isso não significa que devemos esmorecer, tampouco que devemos nos dar por vencidos diante da ascensão de um projeto político que coloca em sérios riscos o nosso país.

Pensar na atual situação do PSDB é pensar no que podemos fazer daqui para frente para enfrentar o lulo-petismo e, apesar dos pesares, o PSDB é o único partido que tem potencial para se tornar uma alternativa séria e viável contra o populismo de Lula e seus lacaios.

O que se pode dizer sobre o PSDB de hoje?

Ora, é claro que o PSDB não conseguiu estabelecer uma estratégia eficiente para enfrentar a enorme popularidade que Lula obteve no seu segundo mandato. Nas últimas eleições presidenciais os tucanos se perderam e enveredaram por caminhos que prejudicaram sua imagem na cidade de São Paulo. Em lugar de assumir sua vocação de ser um partido ligado à classe média mais progressista da cidade – aquela que tem potencial de decidir eleições já que está familiarizada com o meio de comunicação por excelência de nossa era, a internet – o PSDB por um lado não atacou o PT como deveria por conta de uma postura covarde diante da força política do Lula. Por outro lado ensaiou se aproximar do eleitorado mais conservador ligado aos protestantes pentecostais que são superestimados pelos analistas políticos no que concerne a seu potencial de decidir eleições.

E por quais motivos eu afirmo que os protestantes pentecostais são superestimados? Ora, porque eu sou carioca e vi como o Marcelo Crivella, bispo da Universal e sobrinho do Bispo Edir Macedo, nunca conseguiu se eleger para cargos executivos na cidade do Rio de Janeiro já que, embora conte com o aparato midiático do conglomerado de Macedo, enfrenta uma enorme resistência da maioria dos eleitores que são se identifica com a confusão entre política e religião que esse tipo de político promove. Protestantes são fortes em campanhas para o legislativo já que cooptam fiéis com facilidade, mas esses fiéis não estão em número suficiente para eleger prefeitos, governadores e presidentes! Pior, quem escolhe enveredar pelo tortuoso caminho em direção à conquista desses eleitores cria uma enorme rejeição entre aqueles que não se identificam com a dupla explosiva política-religião. Os danos são perenes e José Serra se comprometeu irremediavelmente na campanha presidencial quando chegou ao cúmulo de distribuir santinhos onde podíamos ler “Jesus é o caminho, a verdade e a vida”. Pode ser, mas no que isso ajudaria um governo?

Não obstante, José Serra não conseguiu acertar o alvo, já que nem todos compraram essa religiosidade exacerbada que era evidentemente artificial. Além de errar feio a mira ele conseguiu a proeza de afastar seu eleitorado. O resultado está ai: toda uma trajetória política jogada no ralo graças à hipocrisia e a negação de bandeiras históricas que ele sempre defendeu.

Espero sinceramente que o PSDB aprenda a lição. O partido precisa urgentemente reconhecer que os protestantes são superestimados pela imprensa, precisa reconquistar seus antigos eleitores promovendo campanhas e atos que estão de acordo com o que esse eleitorado espera: incremento econômico, investimentos estruturais para o crescimento da economia, separação entre política e religião e, acima de tudo, promoção das liberdades individuais. 

O sindicato e os dois Josés

17 de outubro de 2012 – o site “Rede Brasil Atual” publicou uma entrevista com o presidente do sindicato dos jornalistas profissionais do estado de São Paulo, o senhor José Augusto Camargo, onde o sindicalista acusou José Serra de promover a censura ao se recusar a falar com alguns jornalistas. Camargo pareceu ignorar completamente o que significa “censura”. Já que José Serra era um cidadão que pleiteava um cargo público eletivo ele não contava com a estrutura estatal para promover a censura, como se não bastasse, Serra, enquanto cidadão, tinha todo o direito de recusar entrevistas. Mas negando veementemente esses notórios fatos, Camargo preferiu propagar uma mentira. Sua entrevista foi evidentemente motivada por razões políticas. Como presidente de uma entidade ligada à CUT – que mantém relações que beiram a obscenidade com o PT – Camargo tentou imputar a Serra algo que o tucano não fez para colaborar com a campanha eleitoral do candidato do PT à prefeitura de São Paulo, Fernando Haddad.

 

28 de outubro de 2012 – o mensaleiro condenado pelo STF e ex-presidente do PT, José Genoino, foi a sua zona eleitoral cercado pela tropa de choque paramilitar da militância petista. Lá os milicianos, digo, militantes, promoveram uma verdadeira barbárie. Derrubaram eleitores, como uma senhora de 82 anos que se locomovia com o auxílio de uma bengala, e agrediram jornalistas que tentavam fazer perguntas para o corrupto condenado.

 

Fica a dúvida: será que José Augusto Camargo e seus colegas do sindicato se manifestarão contra a atitude dos Petistas que agrediram jornalistas no exercício de sua profissão? Será que o sindicato se manifestará em apoio aos colegas que foram vítimas da truculência dos “companheiros” Petistas? Será que o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo se mobilizará e cumprirá a obrigação de defender os jornalistas contra as arbitrariedades do PT?

 

Aguardemos…

De Paris o governador não deve ver

Recentemente vimos o governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral junto à uma matilha infame aproveitando a capital francesa com direito a guardanapos amarrados ridiculamente nas cabeças e dancinhas. Enquanto isso, no Rio de Janeiro, cidadãos que dependem do SUS agonizavam nas filas dos hospitais num cenário dantesco onde médicos e enfermeiros lutavam com poucos recursos para salvar vidas. 

Há pouco em rede nacional apareceu um pouco do que acontece em nossos hospitais. A médica Angela Tenório, em desespero, desabafou. Um desabafo de uma pessoa que todos os dias trabalha sob imensa pressão para dar conta, sozinha, do atendimento da emergência de um grande hospital carioca.

Mas o Rio de Janeiro está longe de ser a exceção. No Estado da Paraíba um médico, visivelmente abalado e exausto, disse:

É isso que a população desse país enfrenta enquanto os governantes, nossos servidores, eleitos e sustentados por nós, viajam de jatinho a custa de dinheiro público ou dinheiro oriundo dos bolsos de contraventores e empreiteiros que vencem licitações super faturadas. Eles, quando caem doente têm acesso aos melhores hospitais e médicos, sabemos bem quem paga a conta. Não é Sarney? Não é Lula? 

E como se tudo isso não bastasse ainda temos que engolir esse tipo de notícia compartilhada por uma amiga minha que é médica e atende em hospitais públicos do Rio de Janeiro. Essa jovem médica trabalhava em um hospital particular de grande porte, como de praxe, quando estou na minha cidade natal, sempre marcamos um almoço ou café. Na última vez que nos encontramos ela comentou que estava prestando um concurso público para trabalhar no SUS, disse que ganhava bem no hospital particular, mas que sentia a obrigação de trabalhar no sistema público de saúde já que havia se formado numa universidade pública e queria devolver um pouco do que a sociedade deu à ela. Ela evidentemente passou no concurso, é uma mulher inteligentíssima e apaixonada pela medicina. Mas já sente o peso e a pressão de enfrentar emergências lotadas, falta de equipamentos e condições insalubres de trabalho, além do absurdo de ver um governo infectado por uma ideologia desumana querer reconhecer diplomas de médicos formados em universidades de qualidade duvidosa. É bonito mostrar para a ONU o incremento no número de médicos, ou de formados em universidades, mas a qual custo? 

Sérgio Cabral e matilha em Paris. Não esqueceremos

 

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Andreas Palluch e a filha Andrea. Palluch faleceu no hospital Souza Aguiar depois de passar 47 dias internado a espera de uma cirurgia que poderia ter salvo sua vida

 

Uma história Severina

Para quem ainda questiona a decisão do STF que legalizou a interrupção da gestação de fetos anencéfalos, deixo um trecho do texto da fantástica Eliane Brum seguido do filme “Uma História Severina”, dirigido pela própria Eliane.

Chega de torturar mulheres

O que o STF decidirá, ao julgar a permissão do aborto de anencéfalos, é se o Brasil respeita os direitos humanos – ou prefere seguir infligindo dor a mulheres que tiveram a infelicidade de gerar um feto incompatível com a vida

Por: ELIANE BRUM (Clique aqui para ler o texto completo)

Agora, Severina, que nos conta com o seu viver o que é a vida em tragédia. Em 20 de outubro de 2004, no mesmo momento em que o Supremo derrubava a liminar que permitia o aborto de anencéfalo sem autorização judicial e um dos ministros perguntava se essas mulheres existiam, Severina Maria Leôncio Ferreira internava-se em um hospital do Recife para interromper a gestação. O médico decidiu deixar o procedimento para o dia seguinte – e no dia seguinte foi tarde demais. Severina teve de deixar o hospital carregando sua dor e sua barriga. Era o seu segundo filho. E ele não viveria.
Severina e seu marido Rosivaldo plantavam brócolis em Chã Grande, um pequeno município nas proximidades do Recife. Mesmo pobres e analfabetos, eles decidiram procurar a Justiça em busca de autorização para interromper a gravidez. Aqui talvez valha uma pausa para se enfiar na pele de Severina e imaginar o que é para uma mulher analfabeta, vinda da zona rural, sem dinheiro, buscar a Justiça no Brasil – e isso tudo em um momento em que se sentia despedaçada. Severina só teve a coragem de enfrentar essa enormidade porque continuar aquela gestação para a morte seria um martírio ainda maior.
Acompanhei Severina para contar o longo dia seguinte a que os ministros do Supremo não assistiriam. O documentário Uma História Severina (Imagens Livres), dirigido por mim e pela antropóloga Debora Diniz, mostra que as mulheres severinas existem – e precisam que o Estado reconheça sua existência, sua dor e seus direitos. A longa travessia de Severina é contada em apenas 23 minutos. Quem quiser pode assistir ao documentário na internet, basta clicar aqui. Em 2005, O filme foi enviado a todos os ministros do Supremo.
Não vou repetir o que está contado pelo registro da vida em curso de Severina. Cada um pode ver por si mesmo. Quero contar apenas sobre algumas pequenas delicadezas e grandes brutalidades da trajetória de Severina que podem complementar as imagens – e nos ajudar a compreender o que significa para uma mulher ser condenada a continuar gerando um filho para a morte. Nas últimas semanas do martírio de Severina, eu tirei férias da ÉPOCA, onde trabalhava como repórter especial, e passei a acompanhá-la. Só a deixei depois do enterro do bebê, que nasceu morto.
Se a liminar não tivesse sido derrubada, Severina faria o aborto no quarto mês de gestação. Como foi obrigada a entrar na Justiça, seu sofrimento foi prolongado até o sétimo mês, quando finalmente conseguiu a autorização. Tenho convicção de que Severina não deveria ter vivido o que viveu nesses três meses. Ao testemunhar seu sofrimento, ficou muito claro para mim que aquilo era, sim, um tipo de tortura – uma tortura imposta pelo Estado.
Até o exame revelar que seu filho era anencéfalo, Severina fazia o pré-natal na companhia de outras grávidas da zona rural, numa alegre romaria de mães tecendo roupinhas e planos. Severina queria muito um segundo filho – e Rosivaldo, seu marido, sonhava com uma menina. De repente, os caminhos dessas mulheres bifurcaram-se – também literalmente. Dali em diante, Severina seguiria sozinha, por outra estrada. E no percurso dela, haveria morte – e não vida.
Imaginar como era a cabeça do filho dentro dela foi um dos horrores vividos por Severina nos três meses que se seguiram. Ela tinha, naquele momento, um medo e uma esperança. O medo era o de machucar, com algum movimento mais brusco, aquela cabeça em que o médico disse e o ultrassom mostrou que faltava uma parte. Para ela, era como uma ferida aberta. Numa ocasião, Severina sentiu-se mal e botou para fora um vômito escuro. Pensou que era sangue. E sofreu atrozmente por pensar que tinha machucado a cabeça do bebê.
A esperança, Severina só às vezes confessava. Mas pensava, quase sempre, que algo mágico aconteceria de repente, e a cabeça do filho seria reconstituída dentro dela. A cada sensação diferente, essa fantasia reacendia-se. Severina então me dizia, meio envergonhada: “Eu sei que não pode ser, o médico disse que não acontece, mas será que…?”.
Enquanto esperavam por uma decisão judicial, em horas e horas de cadeira, pilhas e pilhas de papéis que não decifravam, Rosivaldo, o marido de Severina, enfrentava a curiosidade do povo na feira. Já se espalhara na pequena comunidade que ele era “o pai do bebê sem cabeça”. No próprio verbete do dicionário Houaiss, a anencefalia é definida como “monstruosidade”, o que diz bastante sobre como o senso comum percebe essa fatalidade. Na escassez de novidades da vida da cidade pequena, Rosivaldo despontou como o “pai do monstro”. E quando ele alcançava a feira para vender seus pés de brócolis, precisava se conter para não responder com violência física à agressão verbal da vida concreta dos dias.
Só quando a autorização judicial chegou, Severina reuniu forças para uma providência que até então não tivera coragem de tomar: comprar a roupa com que o filho seria sepultado. O ato transformou-se numa violência muito maior do que já era – uma violência que me faltou repertório para prever. Severina queria uma roupinha com capuz para impedir que a cabeça malformada do seu bebê ficasse exposta à curiosidade pública no enterro. Severina desejava pelo menos poder proteger seu bebê na morte. É importante lembrar que, agora, não era mais um aborto, como teria sido no início da gestação. Agora, seria um parto. Haveria um enterro e, para sempre, um filho sepultado. E, no caso de Severina, existiria ainda a insanidade de um bebê sem certidão de nascimento – mas com atestado de óbito.
Como venho do Estado mais frio do Brasil, eu jamais supus que encontrar uma touca poderia ser um problema. Mas, no clima tropical do Recife, Severina não conseguiu achar uma roupinha com capuz. E o inusitado do pedido fez com que ela se sentisse obrigada a explicar, de loja em loja: “Ele não vai viver”. Prometi, então, que depois que ela fosse internada, eu procuraria por ela. Encontrei no dia seguinte, em um shopping, uma roupinha branca com uma touca que ela ficou acariciando no hospital com os olhos afogados. Depois, buscou o álbum de fotografias de seu filho, Walmir, então com 4 anos. Acariciou cada foto em silêncio – cada uma delas uma prova de que ela poderia gerar um filho vivo.
Na rede pública de saúde, desenhou-se a estação seguinte do calvário severino. Ela foi empurrada de um hospital a outro, com a autorização judicial na mão. “Não há vagas”, “meus colegas são contra o aborto”, “tenha paciência”. Não fosse Paula Viana, da ONG Curumim, ajudar Severina a fazer cumprir seus direitos duramente conquistados, sua peregrinação duraria ainda mais tempo, como é mostrado no documentário.
Severina suportou mais de 30 horas de trabalho de parto, a maior parte delas com contrações excruciantes. Quando não tinha mais posição, arrastava-se até o corredor. Era inevitável encontrar-se com uma mãe feliz com seu bebê – vivo – no colo. Nesses momentos, os olhos de Severina gritavam uma dor que eu nunca vi no olhar de outro ser humano. Se a tortura de Severina fosse resumida em uma só cena, seria aquele olhar. Aquele olhar que palavras são insuficientes para descrever. Entre todas as mulheres da maternidade, Severina seria a única ali que, ao final, teria um caixão – e não um berço.
E assim foi.
Severina está longe de ter sido a única mulher torturada nesses anos todos, apenas que sobre a tortura dela há documento. Espero dormir na quarta-feira em um país que não torture mulheres porque tiveram a infelicidade de gerar um feto sem cérebro.

Uma mensagem para a ABDR (Associação Brasileira de Direitos Reprográficos)

Há pouco precisei consultar uma obra que AINDA não comprei, mas já li em bibliotecas. Eu queria ler apenas umas poucas páginas para ter a certeza que minha memória e anotações não traem o texto. Tentei entrar no excelente “Livro de Humanas”, uma biblioteca virtual que distribuía gratuitamente livros digitalizados quando me deparei com uma triste mensagem. O site está fechado por conta de ameaças feitas pela ABDR (saiba mais aqui).

Escrevi então uma mensagem para a tal da ABDR, mas faço questão de compartilhar com vocês minhas palavras humildes.

Faço um apelo aqui. Não deixem isso passar em branco! Escrevam sobre em seus blogs, divulguem o absurdo nas redes sociais e, mais importante, vamos tentar comprar obras vendidas pelos próprios autores na internet. Sites como Amazon permitem que autores vendam diretamente seus livros, a Amazon leva uma porcentagem, mas os autores ficam com boa parte dos lucros e encontramos e-books lá que realmente custam mais barato, compare os preços dos e-books disponíveis no mercado brasileiro para ver a diferença…

Você é autor? Experimente vender suas obras diretamente na rede sem o intermédio de editoras!

Sem mais delongas, minha mensagem para a ABDR:

Muitos dos livros que fazem parte da minha biblioteca, ainda pequena, mas enorme se compararmos com a quantidade dos livros que a maioria dos brasileiros possui em casa, foram adquiridos depois que li trechos das obras colocadas pelos meus professores no “xerox”. Muitas das obras que hoje estão devidamente organizadas nas minhas estantes foram compradas depois que li uma versão digital “baixada” da internet.

Eu compro livros porque amo livros, tenho um carinho enorme pelas obras que possuo e quando gosto de algo que leio na internet ou em textos fotocopiados faço questão de juntar dinheiro e comprar a obra para prestigiar os autores, mesmo sabendo que são editoras e pretensos “defensores” de direitos autorais que ficam com a maior fatia dos lucros da venda. Gente que as vezes nunca escreveu dez páginas de um trabalho inédito, que não sabe o sacrifício que é produzir e concretizar pela escrita uma obra da mente humana, e se acha no direito de explorar e colocar um preço proibitivo no conhecimento.

Não vou tentar convencê-los do absurdo que é perseguir a difusão do conhecimento em um país onde livros custam caro e poucos podem comprá-los. A ganância é assassina da sabedoria e parcimônia.

Mas vocês devem saber que os dias dessa atividade infame que vocês realizam com empenho está com os dias contados.

Autores agora podem disponibilizar suas obras na internet e vendê-las ou distribuí-las gratuitamente sem o intermédio de vocês. Na Amazon muitos autores colocam seus livros que podem ser comprados por preços justos ou baixados para o  e-book reader da Amazon – há pouco comprei um livro que eu estava de olho há tempos, ele chegou em segundos para meu e-book reader e já me delicio lendo a obra e sabendo que a autora ganhou muito mais vendendo dessa forma. Como eu fico feliz com isso!

Eu respeito direitos autorais, vocês defendem seus interesses.

Favela, meu amor

Li uma reportagem sobre a prisão do Rapper Emicida que num show na periferia de Belo Horizonte estimulou o público a levantar o dedo do meio para os policiais. O rapper foi detido por desacato. Podemos imaginar que colocar o público de um show contra os policiais que trabalham para manter a segurança e a ordem pode colocar em risco a vida desses homens e do próprio público. E se as pessoas aquecidas pela música de Emicida – que é um protesto contra a desocupação de Pinheirinho – decidissem atacar os policiais que cuidavam do show? Talvez o ato de Emicida tenha sido irresponsável, mas mesmo que ele não tivesse feito isso e apenas cantasse a música os policias não poderiam dar voz de prisão para o artista pelas mesmas razões que efetivamente deram? Afinal, diz um trecho da letra: “De violência / sob coturnos de quem dita decência / Homens de farda são maus / era do caos / Frios como halls, engatilha e plau! / Carniceiros ganham prêmios na terra onde bebês respiram gás lacrimogêneo“. Acho que sim… mas se esse tivesse sido o caso entraríamos em outra discussão sobre a liberdade de produção artística. E sobre liberdade de expressão eu tenho uma opinião bem formada: ela deve ser defendida em todos os sentidos, incondicionalmente. Isso mesmo!

A desocupação de Pinheirinho foi o cumprimento de uma decisão judicial. Se houve excesso dos policiais isso precisa ser investigado, embora pelo andar da carruagem as coisas vão ficar por isso mesmo. A impunidade no Brasil é generalizada, especialmente quando os prejudicados são favelados que tanto nos incomodam. Sim, incomodam.

Quando surgem barracos nos morros próximos às nossas casas, quando passamos tremendo com nossos carros por avenidas que cruzam favelas, quando vemos a paisagem de nossas cidades maculadas por barracos precários e lixo ou quando cruzamos com uma pessoal mal vestida, falando um português torto e jogando na nossa cara que ainda não somos o país do futuro.

Favelas incomodam, mas deveria ser mais incômodo perceber que um pai de família que ganha um salário mínimo não tem condições de comprar ou alugar uma casa em um lugar decente. Há pessoas que moram nas favelas pela comodidade de não pagar impostos e contas? Sim. Há pessoas que moram porque não tem condições de sair dessa situação? Evidente.

Miséria

Foto tirada em Montevidéu, Uruguai. Abril de 2012.

Estudei com uma menina na época do pré-vestibular que cresceu numa favela muito miserável na Baixada Fluminense. As favelas da Baixada Fluminense estão longe das câmeras da Globo, Record ou Band. As favelas da Baixada estão escondidas dos olhos sensíveis do bacana de Copacabana. As favelas da Baixada não tem a vista deslumbrante que se vê do alto da Rocinha. São miseráveis. Minha mãe que é professora da rede Estadual do Rio de Janeiro e trabalha numa escola localizada num dos bairros mais pobres do Estado já cansou de me contar casos de alunos que desmaiavam de fome durante as aulas. Os professores fazem vaquinhas para comprar cesta básica para as famílias mais pobres e quando falta merenda na escola eles compram com o próprio pouco dinheiro alguns biscoitos e leite para a molecada que realmente precisa. Essas crianças não são filhos de vagabundos. Seus pais trabalham. São os empacotadores do mercado da Vieira Souto, as empregadas do Leblon, os faxineiros do Shopping da Gávea. Gente que cruza a cidade em ônibus caros e caindo aos pedaços, enfrentam as filas da Central do Brasil como o coração na mão por saberem que seus filhos estão sozinhos no outro lado do Rebouças, na beira da Via Dutra, nas vielas com esgoto à céu aberto.

A menina que estudou comigo era uma dessas crianças. O pai saiu de casa e sumiu no mundo, a mãe teve que criar ela e a irmã sozinha. Era costureira, trabalhava intensamente, nos finais de semana costurava em casa. A moça um dia me contou que numa noite de Natal a polícia invadiu o barraco onde ela morava, ela acordou com o barulho e quando viu a bota de um dos policias pensou que fosse o Papai Noel. Mas ele não trazia presentes, apenas um fuzil.

A mãe da menina nunca se conformou em morar naquele lugar. Juntou dinheiro por anos, muitos anos e conseguiu comprar uma casinha em São João de Meriti, tudo nos conformes, construída no asfalto e solenemente legalizada. Essa menina que estudou comigo falava com um orgulho imenso da casinha e da mãe batalhadora. Ela fazia o cursinho durante a noite e trabalhava pela manhã, nunca a ouvi reclamar ou se lamentar.

Penduradas nos morros há muitas dessas histórias de vida, de sacrifício diário e pequenas conquistas. Com um salário mínimo não dá para morar no asfalto, mas é inadmissível que essas pessoas tenham que viver nas favelas, sem dignidade, cercadas por marginais e sob o fogo pesado da guerra carioca que mata mais que a do Afeganistão.

Não defendo invasões, não defendo moradias ilegais, defendo uma política habitacional séria, linhas de crédito para que famílias carentes possam comprar suas casinhas. Há muita gente que desmerece programas como o “Minha casa, Minha vida”, é fácil fazer isso de dentro de um apê com três quartos. O “Minha casa, Minha vida” precisa melhorar, as obras estão lentas e já tem gente burlando o sistema, mas a essência do programa é boa sim. Tem gente que fala mal do Bolsa Família, é uma esmola miserável e serve para criar currais eleitorais dos paternalistas, sim… mas diga isso na cara de uma criança que desmaia de fome, diga isso para o professor mal remunerado que junta o pouco que tem para dar comida para uma molecada que convive com a miséria. Sessenta reais faz diferença para quem já abriu a despensa e a encontrou vazia. Não podemos deixar essa gente desassistida, por favor! Mas não podemos também permitir que o governo assaltado por oportunistas canalhas transforme a tragédia em máquina de votos. Que o Bolsa Família continue como um plano para tirar pessoas do desespero, mas que seja um paliativo, algo provisório e que essa gente possa parar de depender da ajuda do Estado o quanto antes. Que linhas de crédito para moradias populares cresçam e que as famílias brasileiras possam, todas, planejar a compra da casa própria e ter a dignidade de pagar pelo próprio teto!

Vamos parar de desmerecer o que é essencialmente bom, vamos pressionar para que seja totalmente bom.

É democracia?

Cabral e Cavendish em ritmo de festa

Cabral e Cavendish em ritmo de festa

E a patifaria se desnudou no Congresso. Já sabíamos que a CPI do Cachoeira terminaria em pizza, mas os parlamentares andam especialmente desavergonhados nos últimos tempos. O deputado federal Cândido Vaccarezza (PT-SP) foi flagrado trocando mensagens pelo celular com o governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral onde aparentemente garante a blindagem do governador, pouco antes o mesmo Vaccarezza tentou impedir que a CPI investigasse as obras superfaturadas da empreiteira Delta que tem por presidente um amigo íntimo do Cabral, recentemente fotos e vídeos de Cabral se acabando na champanha em Paris junto com o dono da Delta nos deram exemplos de uma amizade verdadeira cimentada com milhões de dólares. Comovente.

A classe média mais ligada em assuntos políticos e econômicos prende o fôlego revoltada e matuta sobre o que pode ser feito para contornar a situação. Essas pessoas acompanham os noticiários, a atuação dos parlamentares, a administração de suas cidades, estados e do país. São cidadãos honestos, pagam impostos, respeitam as leis. A cada dois anos pensam cuidadosamente sobre os políticos que receberão seus votos, pesquisam sobre a vida do fulano, verificam se o candidato está envolvido em escândalos, acompanha a alianças políticas nas quais está envolvido, estudam o plano de atuação política e as propostas do cara. E quando os votos são finalmente computados no dia da “festa da democracia” levam um tapa na cara quando constatam que corruptos notórios foram eleitos ou reeleitos.

É que esses seres pensantes são minoria na comunidade dos idiotas chamada Brasil, e a democracia é extremamente competente em oprimir as minorias e impô-las as sandices dos imbecis.  

É que nessa terra de ninguém vence o candidato que mais tem recursos financeiros para torrar nas campanhas, independente das fontes desses recursos, independente se foram obtidos legalmente. Quanto o senhor Cavendish deve ter investido na campanha de Cabral para vencer licitações e superfaturar obras rocambolescas e mal executadas? Quanto o Eike Batista fatura em empréstimos do BNDES – o último foi de mais de 200 milhões de reais – quanto doa para campanhas de aspirantes à presidente da república? Eleitos graças à esses investimentos para campanhas, os candidatos se transformam em agentes dos interesses desses caras e usam a estrutura Estatal para agradar os patrões. Cavendish vence licitações, Eike Batista se torna uns dos mais ricos do mundo às custas de dinheiro público obtidos por empréstimos que até hoje não deram o retorno que deveriam para o Brasil.

 E a maioria vota nos que aparecem mais, ou nos que fazem rir mais. Tiririca, esportistas falidos e artistas do quinto escalão infestam o Congresso Nacional ao lado dos lacaios dos magnatas.

O que é isso?

É a democracia!

Quando eleitos pela maioria de bestas, os calhordas ganham legitimidade para assaltar nossa Nação. Já deu para perceber o que está podre no nosso reino?