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A comissão da verdade

Com todas as falhas, com todos os percalços, oriundos sobretudo da incompetência de nossos legisladores, as leis existem para garantir que o Estado cumpra seu papel principal: proteger seus cidadãos. Todos eles, independente dos crimes que fazem deles réus. Todo cidadão tem o direito à defesa, tem o direito de que os casos que os envolvam sejam investigados com cuidado. Digo isso para enfatizar que sou absolutamente contra a “justiça com as próprias mãos”. E não sou contra apenas por questões teóricas.

Já vi tribunais popularescos em ação.

Quando eu era moleca estava brincando na casa de uma amiga, nossas famílias se conheciam e como nossas mães não gostavam que ficássemos na rua sempre brincávamos ou na casa dela ou na minha. Morávamos bem pertinho uma da outra e quando deu a hora que minha mãe determinou para que eu voltasse para casa me preparei para sair quando fui impedida ou pelo pai ou pela mãe da minha amiga, não me lembro muito bem. Mas lembro porque me seguraram lá. Um homem acusado de estupro estava sendo linchado na rua que era exatamente o lugar que eu deveria passar para chegar à minha casa. Ouvi os gritos e a algazarra, tive que esperar até que o povo terminasse com aquele espetáculo dantesco. Depois houve silêncio e saí correndo para casa com medo de levar bronca da mãe por causa do atraso – minha mãe não admitia atrasos, se ela falasse que era para voltar para casa 16h era para estar dentro de casa exatamente nesse horário. Foi impossível deixar de ver o corpo do homem, nunca tive essa vontade sádica de olhar pessoas falecidas na rua, mas não teve como escapar da visão pois naquele momento a rua estava vazia e apenas o corpo jazia bem no meio. Logo depois da morte do homem as pessoas que participaram do linchamento saíram da cena do crime antes da chegada da polícia. No peito dele estava uma placa improvisada feita de papelão onde se lia “estuprador”. Apertei o passo para casa, não estava exatamente assustada com a cena, estava mais preocupada com a hora.

Era eu uma criança insensível? Não sei… mas não era a primeira vez que eu testemunhava a violência. Cresci num bairro violento na periferia da cidade do Rio de Janeiro. Já presenciei muita coisa e não gosto de relembrar, mas não me lamento. Tudo isso fez parte do processo da minha formação enquanto ser humano. E se há algo no qual eu acredito é na importância do direito a defesa, na importância do funcionamento efetivo dos três poderes do Estado agindo em harmonia e pautados nas leis fundamentadas em direitos, garantias e deveres coletivos e individuais. A massa popular ensandecida e descontrolada é capaz de crimes incomensuráveis, e mais monstruoso, passado o ato quem será o culpado? Quem será punido quando os atrozes chegam a centenas, milhares, milhões? Até hoje não sei se o homem assassinado naquela tarde era realmente culpado, mas poucos anos depois desse acontecimento apareceu um estuprador no bairro. Colaram cartazes com o retrato falado do sujeito na região e numa tarde um rapaz quase teve o mesmo destino do linchado. Confundiram-no com o estuprador e uma turba começou a agredi-lo, até que alguém surgiu e conseguiu convencer o populacho de que o moço era um trabalhador inocente, ele teve sorte. Isso eu não presenciei, a moça que fazia faxina na minha casa viu e me contou, mas por um bom tempo isso mexeu comigo, eu já era mais velha e já tinha uma leitura mais madura sobre minhas reações diante da violência.

E o que tudo isso tem a ver com a Comissão da Verdade que foi instaurada oficialmente ontem?

Ora, tendo ou não poder de punição, essa Comissão deve garantir o direito à defesa, pois punir vai muito além de encerrar alguém atrás das grades. Acusar alguém de ser um torturador covarde é grave e o mínimo que se espera de uma acusação dessa magnitude é que o suspeito possa se defender! Mesmo que ele não seja preso, imagine como será sua convivência com a família, amigos, vizinhos, com toda a comunidade onde ele vive?

E os efeitos dessa Comissão meio torta já se fazem sentir. Um grupo de moleques de todo o Brasil começou um movimento chamado “escracho” no qual vão para a porta das casas de supostos torturadores e sem que os acusados possam esboçar qualquer defesa fazem um estardalhaço, picham o chão da rua em frente à casa da pessoa, trazem cartazes que dizem “seu vizinho é um torturador” e coisas do tipo. É a “justiça” com as próprias mãos: irracional, animalesca, passional, criminosa…

No vídeo abaixo vemos um desses “escrachos” realizados contra o médico João Bosco Nacif da Silva. O senhor Nacif foi o legista que fez o laudo da necropsia de alguns mortos durante a ditadura. Como diz um próprio militante do tal do movimento “Levante da Juventude”, os resultados dos laudos ainda não estão bem explicados. Não estão bem explicados, preste a atenção! Não se sabe em quais circunstâncias o médico teve que liberar os laudos, não se sabe se ele sofreu ameaças, não se sabe… e mesmo assim os “justiceiros” foram à casa do homem executar a punição, sem que ele pudesse dar a sua versão dos fatos. Nacif, um senhor de idade avançada, reagiu com evidente desespero e sozinho enfrentou seus carrascos.

Deixo a pergunta para os jovens do “Levante da Juventude”: é assim que vocês querem justiça? Vocês que se dizem defensores dos direitos humanos realmente acham legítimo desrespeitar direitos humanos para supostamente promover direitos humanos? Não há uma contradição nessa história?

O que é democracia?

O que é democracia? Uma pergunta comum, mas com respostas difíceis. Winston Churchill além de um político acima da média foi um pensador excepcional que tinha a rara qualidade de escrever muito bem. Ler Churchill é um prazer em vários sentidos, não desagradaria uma pessoa interessada em teoria política e história e tampouco um amante de um texto literário. Churchill comentou que a democracia era ruim, mas era a melhor opção dentre as disponíveis. Mas de que tipo de democracia estamos falando?

A democracia em geral é reduzida nos discursos que circulam no Brasil ao direito ao voto. A época das eleições é comumente chamada de “festa da democracia” como se o ato de escolher um representante fosse a manifestação máxima do espírito democrático. Mesmo tendo em vista que em nossa pátria o voto não é um direito, é uma obrigação, um pressuposto para a idéia de cidadania. Deixe de votar e perca seus direitos mais fundamentais: um transgressor dessa norma está impedido de tirar o passaporte e deixar o país, tal como em Cuba onde a blogueira Yoani Sánchez já teve dezenas de pedidos de deixar o país negados; deixe de votar e perca o direito de exercer cargos públicos, não importa se você passar em primeiro lugar no concurso público mais difícil, sem votar você é impedido de assumir o cargo. Quando passei no vestibular uma das exigências para os calouros na maioridade era apresentar o comprovante de quitação eleitoral, deixe de votar e seja impedido de cursar uma universidade pública. Enumerei três situações: direito de ir e vir, direito de exercer uma atividade profissional, direito de estudar! Três direitos negados a quem não quer participar da “festa da democracia”. Há algo de muito errado ai.

Lendo argumentos a favor do voto obrigatório me deparei com um particularmente ridículo: a obrigação do voto força as pessoas a discutirem política. Quer dizer que devemos ser forçados? Quer dizer que somos tão tolos que precisamos de leis para nos obrigar a pensar sobre o nosso país? Ora, nem preciso ir tão longe, a obrigatoriedade do voto realmente nos faz discutir política? Podemos até discutir, mas fazemos pouco.

Mas não entramos ainda no pior cenário.

Ora, essa obrigatoriedade do voto leva pessoas que na maior parte do tempo nem pensam e tampouco discutem política a votar simplesmente porque não obrigadas. E nesse caso não votam no melhor projeto político: mas no candidato mais simpático, com uma propaganda mais sedutora, no engraçadinho, no moço que distribui camisetas e promete consertar o asfalto da rua! Muitas vezes esses candidatos mais sedutores e sem qualquer projeto político consistente são os mesmos que jogam o dinheiro público na vala da corrupção, dinheiro que falta aos hospitais, escolas, segurança pública, saneamento básico, etc… e sem hospitais perdemos o direito à saúde e ao bem-estar e não raramente a vida; sem escolas perdemos o direito a educação e formação e, pasmem, capacidade de discutir seriamente política; sem segurança pública perdemos o direito de ir e vir e muitas vezes o direito a vida; sem saneamento básico uma camada não desprezível da população está exposta a doenças erradicadas na maioria dos países desenvolvidos. A obrigatoriedade do voto, a “festa da democracia”, redunda assim no cerceamento de garantias e direitos individuais.

Não, a vivência democrática não se realiza no voto, mas na experiência plena dos direitos individuais. Essa é a maior conquista que a democracia nos legou, conquista que se perde no regime político burro que experimentamos no Brasil e que pode ser chamado de muitas coisas, menos de um regime democrático.

Num regime democrático digno do título o voto não é um direito, mas um dever voluntariamente assumido por pessoas que discutem e amam política, que discutem e amam política de modo a escolher muito bem seus representantes. Que escolhem políticos baseadas nas idéias do bem comum, da coisa pública, e não em problemas localizados, não a partir do egoísmo de quem só consegue olhar para o próprio umbigo ou acha que se um panaca o faz rir já merece seu voto.

É hora de problematizarmos a democracia que vivemos, é hora de propormos uma ContraDemocracia.